Riscos para o refinanciamento da dívida pública

Sérgio Goldenstein

A análise dos fundamentos macroeconômicos do Brasil mostra que o quadro fiscal representa a sua principal fragilidade. Com uma dívida bruta que deve ficar próxima a 100% do PIB no final de 2020 (uma das maiores dentre os mercados emergentes), o refinanciamento da dívida pública mobiliária federal interna (DPFMi) tende a ser alvo de crescente atenção. A avaliação do perfil da dívida e de sua estratégia de gerenciamento permite uma maior clareza com relação aos potenciais impactos sobre a percepção de risco-país, a política monetária e eventual contaminação de outros ativos financeiros.

O significativo aumento dos gastos públicos para mitigar os efeitos econômicos da pandemia do novo coronavírus acarretará forte aumento do déficit fiscal em 2020 e impactos que transbordarão para os anos seguintes. A Instituição Fiscal Independente (IFI), no seu relatório de 17/08, apontava um crescimento real de 40,3% das despesas primárias no 1º semestre e um déficit primário de 13,3% do PIB e dívida bruta de 96,1% do PIB no final de 2020.[1]

Nesse contexto, o Tesouro Nacional (TN) anunciou, em 28/08, a revisão do Plano Anual de Financiamento (PAF) para 2020.[2]  A tabela 1 apresenta os novos limites de referência para a Dívida Pública Federal (DPF), que abrange a DPFMi e a DPFe (dívida pública federal externa).

Tabela 1 – Limites de referência para a DPF em 2020

Fonte STN

Destaque aqui para três pontos: 1) aumento das necessidades de financiamento do governo federal; 2) mudança da composição da DPMFi, tendo em vista a expectativa de aumento da participação relativa de títulos prefixados (LTN) concomitantemente à redução da participação de títulos pós-fixados (LFT); e 3) redução do prazo dos títulos públicos emitidos em leilão.

Aumento das necessidades de financiamento do governo federal

Os principais fatores determinantes das necessidades de financiamento são os vencimentos da dívida pública federal (DPF) e o resultado fiscal primário. A Tabela 2 mostra que a necessidade líquida de financiamento em 2020 subiu de R$ 1,068 trilhão para R$ 1,453 trilhão, em razão principalmente do aumento das despesas primárias a serem financiadas com a emissão de títulos, que passaram de R$ 376 bilhões para R$ 675 bilhões. Cabe ressaltar que o valor de R$ 1,453 trilhão tem a premissa que o Tesouro deveria emitir de maneira a manter constante a reserva de liquidez (“colchão”) disponível para pagar dívida. No entanto, a projeção média para o estoque da DPF elevou-se de R$ 4,625 trilhões no PAF original para R$ 4,750 trilhões após a revisão, variação bem inferior ao aumento do déficit fiscal projetado.

Tabela 2 – Necessidades de financiamento do governo federal  (em R$ bilhões)

Fonte STN.

O PAF revisado revela que o TN recorreu a dois artifícios. O primeiro foi a utilização de parte do seu “colchão” de liquidez, que são os recursos depositados na Conta Única e acumulados basicamente por transferências anteriores dos resultados do BC. O segundo foi a transferência de R$ 325 bilhões do “lucro cambial” do BC ao TN.

O Informe sobre a revisão do PAF assinala que “além das novas emissões, o Tesouro Nacional conta com a reserva de liquidez (colchão) da dívida, que pode cobrir parte das necessidades de financiamento, permitindo administrar as captações no mercado de títulos públicos, sobretudo em contextos de maior volatilidade, sem criar pressões excessivas para refinanciar a dívida”. Enquanto nos últimos anos essa reserva se manteve acima de 6 meses de vencimentos da dívida pública, o Tesouro mencionou que conta com meios para manter a reserva sistematicamente acima do parâmetro prudencial de 3 meses de vencimentos. Nesse sentido, o TN fez uso, em 2020, de R$ 144 bilhões em recursos oriundos do resultado do BC que ingressaram em 2018 e 2019, sendo utilizados no 2º semestre de 2020 para atender parte da necessidade de financiamento.[3]

O “colchão” de liquidez foi reforçado pela transferência do resultado do Banco Central referente ao 1º semestre de 2020. Cabe lembrar que a Lei 13.820, de 2019, alterou o relacionamento BC x TN. A partir de 2020, o lucro contábil do BC com reservas cambiais e derivativos (swaps) passa a compor uma “reserva de resultado” que integrará o balanço do BC. Essa reserva somente pode ser utilizada para cobrir os prejuízos do BC. Mas há uma brecha: mediante autorização do CMN, esses recursos podem ser destinados ao pagamento da dívida pública mobiliária nas situações em que severas restrições de liquidez afetarem significativamente o seu refinanciamento. Apesar de, em julho, as emissões de títulos pelo Tesouro terem totalizado R$ 156 bilhões, o CMN decidiu pela transferência alegando “as condições atuais de liquidez no mercado de dívida”.[4]  O secretário do Tesouro Nacional, Bruno Funchal, afirmou que se verificou severa restrição na liquidez, com aumento da demanda por compromissadas e título de curto prazo, resultando em elevação da dívida a vencer nos próximos 12 meses.[5]

No Gráfico 1, pode-se observar que o resgate líquido de títulos acumulado no ano até julho tinha alcançado R$ 120 bilhões, apesar do déficit fiscal bem maior. O outro lado da moeda foi a elevação do volume de operações compromissadas do BC, que saltou de R$ 932 bilhões no fim de 2019 para R$ 1,490 trilhão em julho de 2020 (Gráfico 2).

Gráfico 1 – Emissões e resgates da DPFmi (em R$ bilhões)

Fonte STN.

Gráfico 2 – Saldo líquido das operações compromissadas do BC (em R$ bilhões)

Fonte: BCB.

A nota positiva é a redução do custo de financiamento da dívida, decorrente da expressiva queda da taxa Selic. Em julho, o custo médio acumulado nos últimos 12 meses da DPMFi estava em 7,4% (menor valor da série histórica), contra 8,8% em julho de 2019 e 10,4% em dezembro de 2017. Esse custo tende a cair mais nos próximos meses, tendo em vista a redução do custo de emissão nas ofertas públicas e a parcela relevante da dívida indexada à taxa Selic. Nesse sentido, o baixo patamar da taxa Selic restringiu uma elevação ainda mais significativa da necessidade de financiamento do governo. Ao mesmo tempo, como será abordado mais adiante, reduziu o apetite dos investidores por títulos pós-fixados e forçou o Tesouro a emitir títulos prefixados de curto prazo. Não se deve esquecer ainda que a taxa Selic de 2,0% está muito abaixo da taxa neutra de juros, o que deverá levar o BC a iniciar um processo de elevação da taxa básica a partir do próximo ano.

Em suma, a expansão do déficit fiscal para combater os efeitos da pandemia gerou uma significativa elevação da dívida pública bruta. Contudo, a DPMFi apresentou variação bem menor, pois o Tesouro aproveitou o seu “colchão” de liquidez, reforçado pela transferência de resultado do Banco Central, para rolar menos do que 100% dos títulos vincendos. O déficit fiscal e a rolagem parcial da dívida mobiliária tiveram como contrapartida o aumento do volume de compromissadas do BC (devido ao aumento da liquidez bancária). Esse expediente, no entanto, não é recorrente. Além dos recursos disponíveis na Conta Única do Tesouro terem diminuído e ser prudente a manutenção de um “colchão” de liquidez, novas transferências relevantes de resultados do BC só ocorreriam com a continuidade do movimento de forte depreciação cambial e, mesmo assim, numa situação em que o CMN continuasse a observar severas restrições de liquidez para o refinanciamento da dívida, tendo o cuidado para que uma exceção prevista na Lei 13.820 não vire regra. Dada a perspectiva de continuidade de elevados déficits primários, os volumes a serem refinanciados da DPFMi aumentarão nos próximos anos, situação agravada pela deterioração de outros indicadores da dívida, como a sua composição e a redução do prazo médio de emissão e do estoque, o que analisaremos a seguir.

Mudança da composição da DPF

A revisão do PAF incorporou também uma maior emissão de títulos prefixados de curta duração (LTN) para financiar o aumento de despesas, em detrimento da emissão de títulos pós-fixados (LFT). Conforme apresentado na Tabela 1, os limites para a participação relativa dos títulos prefixados passaram a ser de 30% a 34%, ante 27% a 31%, enquanto o intervalo para os pós-fixados ficou entre 36% e 40%, contra 40% e 44%. O Tesouro alegou, para a alteração da composição, o momento de maior aversão a risco e preferência por liquidez por parte dos investidores.[6]  Mas seriam essas as reais razões?

As LFT são títulos flutuantes indexados à taxa overnight (taxa Selic), portanto com duration zero. Por conseguinte, não embutem risco de mercado (apenas risco de crédito) e, historicamente, constituíram os papéis mais ofertados pelo Tesouro em momentos de crise e de maior volatilidade. A maior aversão a risco deveria gerar uma maior demanda por LFT em detrimento das LTN e não o contrário. Além disso, a emissão de LFT permitiria o aumento do prazo médio da dívida, reduzindo a concentração de vencimentos no curto prazo, e contribuiria para uma redução ainda maior do custo de emissão nos leilões, tendo em vista a taxa Selic em seu menor patamar histórico.

Tabela 3 –  Participação relativa das LFT nos leilões (em R$ bilhões)

Fonte: Elaboração própria com base em dados do BCB

A Tabela 3 exibe os volumes totais dos títulos públicos vendidos nos leilões do Tesouro em comparação às vendas de LFT. Nota-se a significativa redução da participação relativa das LFT ao longo dos últimos dois anos. Difícil dissociar isso do processo de queda da taxa Selic. Os juros reais para os detentores de LFT caíram de forma acentuada. Atualmente, um cenário de taxa Selic estável em 1,9% nos próximos 12 meses indica um juro real negativo de 1,1%, dadas as expectativas de inflação de 3,0% no período. No final de julho, a participação relativa dos títulos pós-fixados na DPF era de 39,4%, abaixo do limite mínimo de 40% previsto no PAF original, indicando muito mais uma reduzida demanda por LFT num ambiente de Selic baixa do que uma baixa disposição do Tesouro em ofertar esses títulos. Por sinal, tal argumentação pode ser comprovada pela relação demanda/oferta nos leilões de LFT realizados em 2020 (Tabela 4). Nos anos anteriores, o Tesouro vinha conseguindo colocar mais de 90% das LFT oferecidas em leilão. No acumulado de 2020 até agosto, as vendas totalizaram apenas 55,9% das ofertas. Ao se considerar apenas os dois primeiros meses do ano, antes da pandemia, essa relação foi ainda menor, de apenas 36,1% (financeiro de R$ 19,3 bilhões).

Tabela 4 –  Demanda por LFT nos leilões

Fonte: Elaboração própria com base em dados da ST

Com a baixa taxa Selic tornando desinteressante as LFT, uma consequência poderia ter sido o aumento dos seus deságios (prêmios) até um patamar que estimulasse sua demanda. Mas, na prática, a adoção de tal estratégia acarretaria efeitos ainda piores. Os principais detentores de LFT são os fundos de renda fixa, que se caracterizam pela baixa volatilidade. Uma elevação dos deságios acarretaria marcação a mercado negativa das cotas desses fundos (já pressionados pela baixa taxa Selic), o que tenderia a gerar resgates, vendas de LFT no mercado secundário para atender aos resgates e elevação adicional dos deságios, numa espiral negativa.

Assim, a emissão de um volume maior de LFT, que seria uma estratégia interessante para reduzir o custo de emissão da dívida e alongar o seu prazo médio encontra barreiras na baixa demanda do mercado por um título que passou a oferecer remuneração cada vez menor até o ponto de incorporar um juro real negativo. Registre-se que quando o Banco Central discute a existência de um limite efetivo mínimo para a taxa básica de juros brasileira (lower bound) e afirma que o prêmio de risco tende a ser maior no Brasil do que em outras economias emergentes, não explicita eventuais dificuldades para a rolagem da dívida pública (nem deveria), mas os dados já mostram a dificuldades para se rolar a dívida pública com títulos de médio ou longo prazo indexados à taxa Selic.

Com a expansão da liquidez bancária e pequena colocação de LFT, os agentes econômicos passaram a carregar um volume maior de operações compromissadas, conforme já mencionado. No entanto, essas operações não representam financiamento da dívida mobiliária, pois são um passivo do BC. Assim, é correto dizer que parte da dívida bruta é composta pelas compromissadas, mas não que o Tesouro esteja financiando sua dívida por meio dessas operações, como afirmam alguns analistas. Um dos motivos dessa confusão deve-se ao fato de as compromissadas serem uma operação na qual o BC esteriliza o excesso de liquidez mediante a venda (com compromisso de recompra) de títulos públicos de sua carteira. Em outros países a contabilização da dívida bruta incorpora a carteira total de títulos do banco central e não apenas os títulos utilizados como lastro nas compromissadas.

O volume de cerca de R$ 1,5 trilhão em operações compromissadas é a máxima histórica do país. A boa prática recomenda que desequilíbrios estruturais de liquidez sejam neutralizados por meio de operações definitivas (vendas de títulos da carteira do BC no mercado secundário), sobrando às compromissadas o papel de neutralizar desequilíbrios temporários (de curto prazo) de liquidez.[7] O BC deixou de fazer operações definitivas de venda de títulos há muitos anos, pois o Tesouro via e continua vendo esse instrumento como uma concorrência às suas ofertas primárias. Para não gerar uma concentração de recursos no chamado overnight, o BC passou a complementar as operações compromissadas de 1 dia com operações mais longas. Desde março deste ano, vêm sendo realizadas operações prefixadas de 3 meses e pós-fixadas de 6 meses. Até então, além das operações overnight, o BC vinha fazendo compromissadas prefixadas com prazos de até 6 meses. De acordo com a Tabela 5, o volume de operações compromissadas de curtíssimo prazo (em sua grande maioria de 1 dia), após ter fechado 2019 com o valor de R$ 55 bilhões, chegou a R$ 452 bilhões em 31/07/2020.

Tabela 5 –  Operações compromissadas do BC

( em R$ bilhões) – Fonte: Elaboração própria com base em dados do BCB e da STN

E como as operações compromissadas se diferenciam das LFT para os participantes de mercado? Primeiro, o risco de crédito dos títulos do Tesouro é maior, pois o BC não entra em default por definição. No limite, as operações compromissadas não roladas viram expansão das reservas bancárias (e da base monetária). Segundo, o prazo é bem menor do que o das LFTs emitidas em leilão, facilitando o gerenciamento da liquidez por parte das instituições. Terceiro, o risco de oscilação de preço não existe (compromissadas overnight) ou é muito pequeno (compromissadas de curto prazo), enquanto as LFT apresentam risco no caso de elevação de seus deságios (vide a crise das LFT em 2002, disparada pela precificação de um maior risco de crédito). Nesse sentido, é natural que os agentes de mercado se sintam mais confortáveis carregando compromissadas do que LFT. Numa situação extrema, os agentes econômicos poderiam optar por alocar a totalidade dos recursos disponíveis em operações compromissadas, recusando-se a comprar títulos do Tesouro.

Outro questionamento que frequentemente surge é por que o BC não deixa de esterilizar o excesso de recursos via compromissadas, o que forçaria a um aumento da demanda por títulos públicos. Porém, isso não é uma alternativa. O Copom define a meta para a taxa Selic e cabe à mesa de operações do mercado aberto do BC atuar de forma a equilibrar a demanda por reservas bancárias (dada pelos compulsórios cumpridos por meio de manutenção de um saldo mínimo na conta Reservas Bancárias) com a oferta de reservas bancárias (fatores que afetam a base monetária), de modo que a taxa Selic efetiva (calculada pela média das operações compromissadas overnight) fique próxima à sua meta. Numa situação de excesso de liquidez, como a verificada atualmente, a não atuação da mesa do BC acarretaria uma taxa Selic que tenderia a zero, em desalinhamento com o decidido pelo BC. Além dos impactos sobre a política monetária, isso provocaria um enorme estresse sobre as LFT e a maioria dos títulos privados (que são indexados ao CDI), elevando os seus prêmios

Em síntese, percebe-se uma deterioração do perfil da dívida pública bruta, com a redução do prazo dos títulos emitidos em leilão e o aumento significativo do volume de operações compromissadas, que têm prazo médio bem curto, em torno de 15 dias. O excesso de compromissadas pode dificultar a operacionalização da política monetária. Com relação à DPMFi, o custo de emissão poderia ser ainda menor caso houvesse maior demanda por LFT, mas a reduzida taxa Selic limitou o interesse por esses títulos ao longo de 2020 de forma mais proeminente do que esperava o Tesouro ao divulgar o PAF original. Restou, além da utilização do “colchão” de liquidez (engordado pelo BC), a concentração da emissão em títulos prefixados de curto prazo, haja vista a menor disposição do TN em aceitar vender prefixados de longo prazo, por entender que a inclinação da curva de juros acarretaria um custo maior  ou por não ter observado demanda expressiva. A estratégia do Tesouro pode ser vista como uma tentativa de ganhar tempo, na expectativa que os prêmios de risco caiam nos próximos trimestres e aumente a demanda por títulos prefixados de prazo maior. A principal consequência vem sendo o encurtamento da dívida mobiliária, o que gera preocupação na medida em que aumentam as necessidades de refinanciamento para o próximo ano.

Encurtamento da DPF

Segundo o Tesouro, “a redução dos prazos dos títulos públicos emitidos é a mudança mais significativa no perfil da DPF na revisão do PAF 2020, tendo como causa a maior necessidade de financiamento do setor público. Então, os novos limites para o percentual vincendo em 12 meses aumentam, indicando maior concentração de dívida a vencer no curto prazo, enquanto diminuem os limites para o indicador de prazo médio do estoque da DPF”. O TN alega que a revisão da estratégia está em “linha com o contexto de preferência por liquidez e aversão ao risco por parte dos investidores, característica do período de crise pelo qual passam a economia brasileira e a mundial.”[8]

Aqui cabe um questionamento: como continuar a apontar aversão a risco se a reversão dos efeitos da crise global sobre os mercados foi bastante rápida? Na data de revisão do PAF, em 28/08, as bolsas americanas estavam nas máximas históricas. No Brasil, o Ibovespa já havia recuperado parte relevante das perdas. Uma situação de aversão a risco deveria gerar uma maior preferência dos investidores por ativos de renda fixa e não de renda variável. Adicionalmente, houve forte expansão da liquidez do sistema financeiro, impulsionada ainda pela redução dos compulsórios promovida pelo BC em fevereiro e março. Como já descrito, o volume de excesso de liquidez esterilizado por meio de compromissadas alcançou R$ 1,490 trilhão em julho.

Portanto, a combinação de uma taxa Selic muito baixa e um ambiente de deterioração do cenário fiscal acentuou a inclinação da curva de juro doméstica. Sem demanda expressiva por LFT e sem querer sancionar o prêmio de risco embutido nos segmentos intermediário e longo da curva, restou ao Tesouro concentrar suas emissões em títulos prefixados de curto prazo, na contramão da diretriz de longo prazo de alongar o prazo médio e reduzir a concentração de vencimentos no curto prazo.

Com a revisão do PAF, o intervalo de referência para a dívida vincenda em 12 meses (dívida de curto prazo) ficou entre 24% e 28%, ante 20% e 23% no PAF original. No mesmo sentido, os limites de referência para o prazo médio da DPF caíram para a faixa entre 3,5 anos e 3,8 anos, ante 3,9 anos a 4,1 anos anteriormente (Tabela 1).

Conforme apresenta a Tabela 6, o prazo médio dos títulos domésticos emitidos nas ofertas públicas declinou, nos últimos meses, para cerca de 3 anos. Isso decorreu principalmente da maior participação relativa, nas emissões, dos títulos prefixados de curto prazo. Já o prazo médio do estoque da DPMFi (Tabela 7) está em torno de 3,8 anos há alguns meses, mas, conforme previsto na revisão do PAF, deve começar a decrescer nos próximos meses devido à redução do prazo médio de emissão. O Gráfico 2 ilustra a evolução do prazo médio do estoque e do prazo médio de emissão.

Tabela 6 –  Prazo médio das emissões da DPMFi em ofertas públicas (em anos)

Fonte: STN

Tabela 7 –  Prazo médio da DPMFi por tipo de rentabilidade (em anos)

Fonte: Elaboração própria com base em dados do BCB.

Gráfico 2 – Prazo médio das emissões e do estoque da DPMFi

Fonte: STN

Na análise da DPFMi, o fator que gera maior preocupação é o aumento da dívida a vencer nos próximos 12 meses, dada a sua relação direta com o maior risco de refinanciamento. Segundo a Tabela 8, os vencimentos nos próximos 12 meses somavam R$ 926 bilhões em julho, equivalente a 22,5% da dívida total e superior aos anos anteriores. Como o Tesouro vem encurtando o prazo das emissões, esses valores tendem a aumentar. É esperado que continue colocando um volume grande de LTN com vencimento em 2021. O PAF revisado estima que, no final de 2020, entre 24% e 28% da DPF vençam nos 12 meses subsequentes, o que significaria um valor acima de R$ 1 trilhão. No caso de alguma flexibilização da regra do teto de gastos públicos em 2021, naturalmente aumentariam ainda mais as necessidades de financiamento do governo federal, sem contar o risco de encurtamento ainda maior do perfil da dívida.

Tabela 8 –  Vencimentos da DPMFi nos próximos 12 meses

( em R$ bilhões) – Fonte BC

De modo a reduzir o risco de refinanciamento, uma alternativa seria o Tesouro emitir um volume maior de títulos prefixados de longo prazo. A curva de juros é formada no mercado de DI futuro, caracterizado por uma liquidez bastante elevada. A não ser em situações excepcionais de disfuncionalidade e stop loss (como aconteceu no auge da crise, em março), os preços são bem formados e incorporam as expectativas do mercado para a trajetória da taxa Selic acrescidas de um prêmio de risco. Portanto, o TN não deveria avaliar como “cara” a curva longa de juros, mas aceitar a percepção de maior risco fiscal por parte dos investidores e aproveitar que ela está próxima do seu menor patamar histórico para alongar a dívida. Mesmo que isso contribuísse para acentuar mais a inclinação da curva, seria uma estratégia que diminuiria o risco de refinanciamento da dívida.

Vale destacar que, no próximo ano, o TN terá ao seu dispor um menor “colchão” de liquidez e um volume maior de dívida a ser rolada. Caso o cenário fiscal continue nebuloso ou ocorra algum evento de risco (seja interno ou externo), o Tesouro se veria numa situação de ter que rolar grandes volumes de vencimentos a preços “estressados” num contexto de uma demanda por títulos mais retraída. O resultado seria o aumento dos prêmios dos títulos, maior instabilidade financeira, pressão para elevação da taxa Selic e provável contaminação dos demais ativos financeiros.

Não seria recomendável a compra de títulos longos pelo BC com o objetivo de achatar a curva de juros. Ao fazer isto, estaria distorcendo-a com relação aos fundamentos macroeconômicos, o que permitiria uma saída barata para os investidores estrangeiros (pressionando o câmbio) e reduziria o interesse dos investidores em geral nas ofertas primárias de prefixados de longo prazo.

Uma dificuldade adicional que se observa para uma maior oferta de títulos prefixados de longo prazo reside no fato de que os investidores estrangeiros vêm mostrando pouco apetite pela dívida doméstica. A participação dos clientes não-residentes na DPMFi caiu para 9% em julho de 2020, menor nível desde dezembro de 2009 (Tabela 9), mas ainda detinham em torno de 43% do estoque de prefixados longos (NTN-F), ante 52% em julho de 2019. É fundamental, para a retomada da demanda dos investidores estrangeiros, a percepção que o país voltará para os trilhos do equilíbrio fiscal, sinalizando uma trajetória não explosiva da relação dívida/PIB.

Tabela 9 –  Detentores da da DPMFi (em R$ bilhões)

* Inclui das contas de cliente não-residente criadas por meio da Carta-Circular nº 3.278, de 18.6.2007. São considerados investidores não-residentes as pessoas físicas ou jurídicas e os fundos ou outras entidades de investimento coletivo com residência, sede ou domicílio no exterior. Estão incluídos os títulos detidos por não-residentes por meio de fundos de investimento.

Fonte: Elaboração própria com base em dados do BCB.

Conclusão

Já é praticamente consenso entre os analistas que a deterioração do cenário fiscal representa o principal risco no cenário macroeconômico do país. O exame dos indicadores da dívida pública (em particular da dívida mobiliária) e do seu gerenciamento permite uma avaliação mais criteriosa do balanço de riscos. Para os participantes de mercado, impactos diretos podem ocorrer sobre a política monetária, curva de juros e a percepção de risco-país.

A combinação de um ambiente de significativa expansão dos gastos públicos e taxa Selic muito reduzida vem acarretando alterações no perfil da dívida. Uma dívida maior a ser refinanciada, com aumento dos vencimentos no curto prazo, emite um sinal amarelo. O Tesouro, em 2020, recorreu ao seu “colchão” de liquidez, reforçado pela transferência do “lucro cambial” do Banco Central, mas esse é um expediente não recorrente. A acentuada inclinação da curva de juros indica que o atual patamar da taxa Selic não é condizente com os riscos fiscais. Como resultado, o Tesouro vem encontrando dificuldades para emitir títulos pós-fixados (LFT) e passou a concentrar suas emissões em títulos prefixados de curto prazo. O problema é que isso aumenta o risco de refinanciamento do Tesouro e ainda pressiona o segmento da curva de juros que baliza com maior intensidade o crédito privado.

A revisão da estratégia de financiamento do Tesouro, anunciada no final de agosto, pode ser vista como temporária, numa tentativa de ganhar tempo. O encurtamento da dívida amplifica o risco fiscal. Os próximos meses serão essenciais para clarificar dois pontos importantes. Primeiro, se a taxa Selic chegou a um ponto que coloca restrições ao financiamento da dívida pública. Segundo, qual será o desenho da política fiscal, notadamente como será tratada a regra do teto dos gastos públicos. A evolução recente dos indicadores da dívida mostra que não há qualquer espaço para leniência no trato das contas públicas, sob pena de uma dinâmica negativa que se retroalimentaria. Por outro lado, se crescer a percepção de que a relação dívida/PIB será sustentável ao longo do tempo, o Tesouro voltará a ter espaço para melhorar o perfil da dívida, visto que aumentaria a demanda potencial por NTN-B e títulos prefixados de médio e longo prazo.


[1]https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/575506/RAF43_AGO2020.pdf

[2] https://sisweb.tesouro.gov.br/apex/f?p=2501:9::::9:P9_ID_PUBLICACAO_ANEXO:9324

[3] https://sisweb.tesouro.gov.br/apex/f?p=2501:9::::9:P9_ID_PUBLICACAO_ANEXO:9324

[4] https://www.gov.br/economia/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/2020/agosto-2/cmn-autoriza-transferencia-de-r-325-bilhoes-de-reservas-de-resultado-cambial-do-banco-central-para-pagamento-da-divida-publica-mobiliaria-interna

[5] https://valor.globo.com/brasil/noticia/2020/08/27/cmn-autoriza-a-transferencia-de-r-325-bi-do-bc-para-o-tesouro.ghtml

[6] https://br.reuters.com/article/idBRKBN25O2LV-OBRBS

[7] https://www.federalreserve.gov/monetarypolicy/bst_openmarketops.htm. “OMOs can be divided into two types: permanent and temporary. Permanent OMOs involve outright purchases or sales of securities for the System Open Market Account (SOMA), the Federal Reserve’s portfolio. Traditionally, permanent OMOs are used to accommodate the longer-term factors driving the expansion of the Federal Reserve’s balance sheet–primarily the trend growth of currency in circulation. (…) Temporary OMOs are typically used to address reserve needs that are deemed to be transitory in nature. These operations are either repurchase agreements (repos) or reverse repurchase agreements (reverse repos or RRPs). 

[8] https://sisweb.tesouro.gov.br/apex/f?p=2501:9::::9:P9_ID_PUBLICACAO_ANEXO:9324

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